terça-feira, 22 de abril de 2014

O CHEIRO, MEUS AMIGOS!

Era um dia ensolarado de outono, por volta do ano 1500.
As gengivas apodrecidas dos homens já apenas tremiam em rezas. Que estivessem erradas as contagens dos tais estudiosos, pois bem. Não havia então terra que pusesse fim àquela imensidão de mar. Mas que Deus tivesse clemência de sua situação dantesca, e lhes permitisse voltar logo à pátria lusa. Cada dia havia menos deles.
O Almirante Pedro, a despeito, só pedia a paciência de mais um dia.
Foi quando uma das naus recebeu a bordo o inesperado sinal.
Estaria alucinando o marujo?
O sinal a que me refiro ainda não é a ‘terra à vista’. Não é a água cheia de nuanças de barro e restos da vegetação. Nem mesmo os pássaros tropicais que rondariam os lusos. Não era nada que se oferecesse aos olhos.
A primeira evidência foi o cheiro.
Isso mesmo. Substâncias odorantes, carregadas pelo vento, vaticinaram as terras brasileiras. Cheiro de solo novo e fértil, cheiro de urucuzeiro e de veneno de urutu, de macaxeira e de flor de Maria sem vergonha. Fragrância de pau-brasil, de fogueira, de cabana. Aroma de sexo bem feito, de comunhão com a natureza, de paz.
Até então, os narizes só sabiam do casamento arranjado entre a água salobra e o sanguinolento escorbuto. Dali por diante, seria a nova maravilha do mundo conhecido: a ilha de Vera Cruz.
Somente alguns dias depois chegariam à costa, e Portugal inauguraria o novo achado. Ficaria provado que a navegação era precisa. Havia um novo mundo naquelas paragens. Mas isso é outra história...
O importante mesmo – a primeira impressão – foi, sem dúvida, o cheiro de Brasil. A orgia olfativa de temperos, tinturas, lavagens, minérios e fisiologias, típica da vida e da cultura do populacho índio, selou o destino desse país. Não fosse sua consistência, seu sabor, sua lascívia, sua divindade, e os portugueses talvez tivessem até desistido, dado às costas e tentado noutro lugar.
Muitos séculos depois, houve quem dissesse que, por falta de referência com a qual pudessem comparar os portugas, os índios acharam que fossem deuses.
Mas que grande balela! Os índios simplesmente estavam lá, na deles.
Se um desconhecido entrasse agora na sua casa, não seria um deus, mas um ladrão, certo?
Ao bem da verdade, eram os portugueses quem necessitavam com urgência de uma sensação beatífica, um consolo vindo do céu. A viagem desde a Europa era desumana. E nossos odores lhes prometeram esse Éden. E por isso eles vieram para cá, e colonizaram o Brasil. E por isso escrevo em português. 
Porque a primeira commodity brasileira no cenário internacional foi o cheiro.

O cheiro, meus amigos!

quinta-feira, 17 de abril de 2014

10 MOTIVOS PARA NÃO RECLAMAR DO PREÇO DO OVO DE PÁSCOA

Ah, a páscoa...

O preço de um produto é sempre resposta a uma pergunta do tipo: “Quanto vale o show, Aracy de Almeida?” (piadinha +35).
Ou seja, ao longo do processo de produção, acontecem transformações que agregam valor ao produto final. Esse valor deve ser percebido pelo cliente, de forma que ele entenda ser vantajosa a compra.
Pois bem. A produção de um ovo de páscoa agrega valores muito diferentes de qualquer outro chocolate. A cada valor que se agrega ao produto, mais caro ele vai ficando:
1.  A produção de ovos de páscoa é mais “artesanal” – algumas fases do processo dependem da intervenção direta de pessoas, diferentemente do chocolate em barra, que sai prontinho ao final de uma cadeia de máquinas.         


2.  Para ser armazenado e transportado, o ovo requer espaço e cuidados especiais – onde cabe 1 kg de chocolate em barra se levam apenas 2 ou 3 ovos de 240g; além disso, ao contrário da barra, o ovo de páscoa precisa ser transportado em caminhões refrigerados, pois derrete mais facilmente.
3.  Um ovo de páscoa não é somente um produto para ser consumido, mas um artigo com o qual as pessoas se presenteiam. Logo, sua apresentação (embalagem e afins) é diferenciada – e mais custosa.
4.  Com o acréscimo da demanda por chocolates, as fábricas contratam mão de obra temporária, especificamente destinada à produção de ovos de páscoa.


5.  Coloque 5 barras de chocolate de um lado, 1 único ovo de páscoa do Homem-aranha do outro, e peça a um menino de 4 anos que escolha entre eles. Pois é, o direito de estampar o homem-aranha na embalagem (e colocar um bonequinho mixuruca dentro) custa – e muito.
6.  A produção de ovos deveria se esgotar nas lojas até o domingo de Páscoa (no dia seguinte, aquele produto não tem mais valor). Como isso não acontece, a empresa arca com o custo dos encalhados.
7. Somente 27% (pouco mais de 1/4) do custo para produzir o ovo de páscoa vem do chocolate, segundo estudo feito em 2012 pela consultoria Azo, especializada em vendas no varejo.

8.  Ovos de páscoa quebram facilmente, e um ovo quebrado é um ovo “estragado”, que ninguém quer comprar. Para se precaver dessa perda, as empresas contratam seguro, que tem impacto no custo, e é considerado na composição do preço (aliás - veja que interessante – será que as pessoas que reclamam do preço dos ovos, porque alegam que “chocolate é tudo igual” comprariam um ovo quebrado..?).
9.  O consumidor precisa pagar “o arrego” do governo (com perdão do chulo). Sim, cerca de 40% do preço de um ovo de páscoa são impostos, conforme apontou recentemente o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário.
10.  Agora, a mais importante razão por que o preço do ovo de páscoa é elevado: porque sim! Se existe uma demanda monstruosa por esse produto (e ninguém duvida que exista), as empresas têm direito de elevar sua margem de lucro! (Engraçado como, no Brasil, “aumentar o lucro” é palavrão. Se essa preocupação ainda fosse genuína... Mas não. A regra é: você pode ganhar o dinheiro que quiser, mas deve manter o discurso de que está praticando o menor preço possível).

Boa páscoa, com ou sem ovos de chocolate.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

SOBRE UM CONTO DE DUAS SOPAS

Leio com prazer o post de uma antiga companheira de plantão psicológico no Recordar, repetir e elaborar. Já havia lido postagens anteriores, mas nenhuma me chamou a atenção como essa.
Camila conta que sua avó, sabendo que a neta andava adoentada, deu de fazer-lhe uma sopa restauradora. Acontece que Camila, mulher adulta, já fizera, ela própria, uma sopa restauradora.
Na comparação dos sabores, a sopa da vó acabou levando a pior. E Camila se pôs a refletir. E sua reflexão me fez refletir.
Não tenho essa relação com comida de vó. As minhas nunca foram grandes cozinheiras. É como se a súbita materialização de seus pratos sobre a mesa tivesse um caráter burocrático: “come aí, pois tira a fome”.
Minha encantadora de talheres foi minha mãe. Ela, sim, (só depois de casar e por absoluto empenho próprio) aprendeu a cozinhar muito bem. Tornou-se a cozinheira da minha infância, aquela que fez as comidas que servirão como referência para todos os outros alimentos da vida – de um refinado restaurante à coxinha do bar da esquina (“Hum, esse tal de coq au vin está bem gostoso, mas o frango com polenta da minha mãe...”).
Vez em quando, ainda tenho a chance de me refestelar com suas preparações. E continuo achando sua comida a melhor. Melhor que a minha, inclusive. Talvez falte distanciamento. Talvez falte eu aprender a cozinhar direito.
Mas o que queria dizer é que tem algo que me encanta no relato da Camila: ela mudou.
Sim, mudou, e muito. Aprendeu a fazer sopas – não tenho dúvida – deliciosas! Descobriu o segredo alquímico por trás dos temperos e tempos de cocção. Flagrou papai colocando o presente debaixo da árvore de natal.
Mas estou certo de que sua vovó também mudou.
Aos 80, já não enxerga como antes; a coordenação motora trai a intenção; as papilas gustativas não têm a sensibilidade de outrora: vovó já não faz a mesma sopa.
A sopa da infância nunca mais será executada. Falta uma Camila criança; e falta uma avó 30 anos mais jovem.
Portanto, hoje Camila não se tornou apenas mais uma fazedora de sopas, igualando-se à vó.
Camila tomou o lugar da vó na feitura de sopas.
A vó vai deixando de ser a restauradora de gripes por meio de sopas. Agora, é Camila quem fará isso, quando vovó doente estiver.

Então, enlutamos: não quando nos igualamos aos pais, mas quando nos colocamos no lugar deles.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

EM FAVOR DOS FAKES

Há uma regrinha de ouro, implícita entre os usuários das redes sociais: a da “sinceridade”.
Quando estamos tetê-à-tête, acreditamos que o outro está ali por inteiro, e, portanto, não tem onde se esconder. No mundo virtual, (não no sentido de “possível, mas não existente”, mas no de “análogo ao mundo ‘real’”) não temos essa suposta garantia – enquanto o rapazola está lá no chat, jurando que conversa com uma moçoila semivirgem, do outro lado da tela está um homenzarrão bêbado e nu. Perfeitamente possível.
Desde o começo da internet, está combinado, então, que o bom usuário deve manter coerência entre aquilo que mostra e aquilo que é na verdade.
Por isso, fazer um perfil fake – deliberadamente passar-se por alguém que tem outro nome, CPF e endereço - ou maquiar o próprio perfil (fazer um fake de si mesmo), são coisas feias. Muito feias. Pecados capitais contra a moral das relações internéticas.
Mas que bela hipocrisia, moçada...
Quem é esse eu-de-verdade cuja presença se cobra nas relações? Existe um ‘eu’ que mora dentro de mim?
A filosofia e a psicologia já tiveram longas discussões a esse respeito. O fato de sermos diferentes a cada momento, e essa impressão de que sempre somos mais do mostramos, justificam pensar numa essência interior?
Por incrível que pareça, não, não e não.
Correntes de pensamento ao longo do século XX (como o existencialismo e a analítica do Dasein) nos levam a crer que somos exatamente aquilo que mostramos a cada momento. Nem por isso somos fake. Somos múltiplos, isso sim.
Somos sempre parciais, e nos mostramos conforme a conveniência. Ninguém é conhecido “por inteiro”, nem pelo pai, nem pela mãe, nem pelos amigos do peito, da facul ou do botequim. Nem por si mesmo.
Numa entrevista de emprego, no motel, no almoço em família, no supermercado – cada pessoa veste inúmeros ‘eus’, que variam conforme as circunstâncias.
Uma indefesa moçoila semivirgem deve morar em algum canto do corpo forte do homenzarrão bêbado. E por isso ele pode decidir trazê-la à tona quando e como achar conveniente. Ele não apenas se passa por ela; ele, de fato, é ela, em algum de seus ‘eus’.
A internet apenas radicaliza algo com que estamos bem acostumados: as pessoas se adéquam aos contextos. Desde que o mundo é mundo, as pessoas têm vidas duplas, triplas, quádruplas. Acontece que, há algum tempo, essas vidas paralelas dependiam de lugares concretos para se expressar: portos, confrarias, clubes, prostíbulos, e afins.
A internet, ao oferecer um novo “lugar” para que o sujeito se expresse de forma livre, permite que ele viva muitos de seus ‘eus’ sentado no conforto de seu sofá.
Todo perfil é a versão parcial e tendenciosa de alguém. Só se revela exatamente aquilo que se quer, e como se quer.
Fracassou na profissão? Decepcionado com o casamento? Hemorroidas inflamadas? Só saberão se você quiser.

Nossa vida na internet apenas dá vazão a mais personagens de nós mesmos, com os quais temos que conviver.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Bacalhau impreciso

Elena Molokhovets:"O bacalhau é a única comida, à parte do pão, que, quando uma pessoa se habitua a ela, nunca se aborrece dela, nem pode viver sem ela, nem nunca a poderia trocar por nenhuma iguaria".

Sempre ouvi dizer que “bacalhau” não é uma espécie de peixe, mas o nome de um método de salga, ao qual são submetidas diversas espécies de peixes, como o Cod, o Ling, o Saithe e o Zarbo. Definição democrática, pois a diversidade de espécies permite que a iguaria seja apreciada por quase todos os tamanhos de bolso.
Pois bem. Parece que a história não é beeeeem assim.
Existe um bacalhau – digamos – tradicional (original), feito do peixe chamado Gadus Morhua, que vive nas águas geladas do Atlântico Norte (esse cara aí embaixo). Para os puristas, só esse pode ser chamado de bacalhau. O resto é peixe salgado genérico, ora pois.


Essa coisa de discutir qual é o “legítimo” é bastante comum na culinária, e envolve da pizza ao molho madeira, do pão de queijo ao vatapá.
Particularmente, acho importante que esse debate aconteça, como forma de preservar o valor do original e da tradição. Eu mesmo tenho meus “tabus”. Como ítalo-brasileiro, por exemplo, não engulo muito bem que se chame um (ainda que delicioso) arroz de forno de risoto...
Mas, quando se trata da degustação propriamente dita, acho que vale mais a experiência, o que faz bem aos sentidos. Nesse aspecto, confesso que a discussão sobre o que seja o legítimo bacalhau não faz muito sentido pra mim. Todos os peixes que se vendem secos e salgados (citados acima ou não) ficam maravilhosos quando preparados da maneira certa.
Essa é a minha receita. As quantidades são apenas sugestivas, é claro. Estando o peixe dessalgado no ponto certo, e usando um azeite de boa qualidade, a quantia de batata pode aumentar quase indefinidamente, sem grande prejuízo ao sabor. Aumentar a quantidade de batata é como “botar água no feijão”. E é assim que se faz comida caseira.


500g de “bacalhau”
500g de batata
1 pimentão amarelo grande
1 pimentão verde grande
2 cebolas médias
4 dentes de alho
2 colheres (sopa) de alcaparras
Azeite de oliva (muito)
Azeitonas pretas
4 ovos cozidos
Água
Cheiro verde

Dessalgue o bacalhau em água, na geladeira (o tempo varia muito, dependendo da grossura do peixe. Se forem postas grandes, tipo 2 dedos de espessura, pelo menos 24h a 36h; se forem lascas, 4h a 6h são suficientes).
Numa panela com azeite, coloque os pimentões e a cebola, cortados em tiras, o alho picado, e as alcaparras. Deixe tudo murchar, mexendo quando necessário. Tire do fogo, adicione as azeitonas e o cheiro verde. Reserve.
Encha a panela de água (não precisa sujar outra) e leve ao fogo com o bacalhau. Quando perceber que está prestes a ferver, retire cuidadosamente o bacalhau com uma escumadeira e reserve.
Com a água já fervendo, coloque as batatas cortadas em fatias finas, até que comecem a ficar macias.
Numa travessa untada com azeite coloque, em camadas, as batatas, depois o bacalhau, e, por último, os legumes e os ovos cozidos fatiados. Finalize com mais azeite, tampe com papel alumínio e leve ao forno pré-aquecido a 200°C por 20 min.


OBS: Depois disso, basta dizer que você pode reservar a água do cozimento do bacalhau para fazer o arroz. É o golpe de misericórdia.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

O grito dos maus e o silêncio dos bons: um estudo de caso


Dizem por aí que Martin Luther King Jr. não se preocupava tanto com o grito dos desonestos, dos corruptos, dos violentos ou dos sem ética; o cara se preocupava mesmo era com o silêncio dos bons.

Num bairro de classe média paulistano, duas farmácias disputavam livremente o mercado dos sem-saúde. Adam Smith não imaginaria harmonia maior.
Cada comércio era dirigido por um farmacêutico devidamente habilitado. Em princípio, esse profissional é responsável por orientar e acompanhar os clientes, que chegam com prescrição médica, quanto às formas de utilizar a medicação, possibilidade de efeitos colaterais etc.
Porém, a precariedade dos sistemas de saúde e a cultura brasileira da automedicação faziam com que os clientes pedissem muito mais de nossos personagens. Dor de cabeça, dor nas costas ou espinhela caída, e lá ia o povo procurar um dos farmacêuticos. Eles eram uma forma rápida e fácil de consultar um “doutor”, e tinham a vantagem de já ter à mão o remédio respectivo para cada enfermidade.
Ocorre que, na farmácia A (nomes foram alterados para proteger os inocentes), o “doutor”-farmacêutico era dos melhores. Muito inteligente, se formou numa grande universidade, com ótima colocação na turma, fez pós-graduação, vivia se atualizando. Ele sabia exatamente quais eram suas atribuições profissionais, e resumia-se a elas: “A senhora deve procurar um médico. Eu não posso ‘dar uma olhada’ no furúnculo que nasceu em seu traseiro.”. Com isso, em nome da correção e da ética, frustrava a expectativa de sua clientela.
Na farmácia G, quanta diferença... O profissional não era lá tão brilhante, mas não havia queixa que deixasse passar. “Onde dói? Começou faz tempo?” – e atendia a todos com um largo sorriso, sempre concluindo com duas ou três caixinhas sobre o balcão: “A senhora tome direitinho. Deve melhorar.”. Do ponto de vista ético e legal, era uma farsa e um perigo à saúde pública. Mas o povo o amava.
Tem duas semanas, a farmácia A fechou as portas. Seu farmacêutico procura emprego, e aceita propostas em outras áreas.
A farmácia G?


Vai muito bem, obrigado.
EM COMPOSIÇÃO...